Published on outubro 28, 2023, 8:45 am
Ouvir Morgan Freeman falando em português. Ou William Bonner apresentando o Jornal Nacional em inglês. Talvez um narrador de futebol de rádio, como Eder Luiz, falando freneticamente em japonês. Tudo isso em breve será possível.
Em setembro, o Spotify anunciou um projeto-piloto para tradução de conteúdo com a própria voz da pessoa. A iniciativa, chamada Voice Translation, realizada em parceria com a OpenAI, criadora do ChatGPT, simula a voz original de quem está falando para geração de conteúdo em outro idioma.
No mesmo mês, o Google apresentou formalmente uma iniciativa semelhante: Aloud, ferramenta de dublagem que traduz a voz de um youtuber em outro idioma. Além de inglês e espanhol, o português está contemplado nos testes.
Parece bom. Na verdade, muito bom. E é. Porém, semana passada a imprensa veiculou protestos de dubladores brasileiros. A pergunta deles é: se hoje há esforços para se reproduzir vozes de podcasters e youtubers, o que acontecerá quando a possibilidade chegar a programas de TV e filmes? Na visão deles, desemprego de dubladores é apenas o começo.
É realmente provável que, neste caminho, a profissão sofra um baque. E de jeito nenhum torço para isso. Mas vou me permitir copiar Elio Gaspari, que em sua mais recente coluna em jornal criticou o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, por ser contra carros elétricos por supostamente ameaçarem empregos.
“Assim como os carros a gasolina eram uma ameaça aos fabricantes de carruagens e o navio a vapor ameaçava os fabricantes de velas”, escreveu Gaspari.
Ele tem razão. E o mesmo pensamento vale para os dubladores brasileiros. Um manifesto supostamente apoiado por cerca de 1.500 profissionais do mercado e por empresas de dublagem diz que a “inteligência artificial não deve ser usada para reproduzir vozes de atores em outros idiomas para Língua Portuguesa Brasileira com a finalidade de substituir os dubladores.”
Ainda segundo os organizadores, a dublagem, “como toda manifestação cultural, também representa o momento em que o povo está vivendo e isso uma IA nunca vai conseguir emular. Então, é mais do que simplesmente manter trabalhos, é manter a representação da nossa cultura”.
É de assustar. Os dubladores brasileiros querem uma reserva de mercado com o argumento de que uma manifestação cultural será encerrada? Parece-me uma alegação igual ao que vendedores de enciclopédia poderiam ter feito. Afinal, eles distribuíam cultura. Os lanterninhas de cinema também facilitavam o acesso à cultura.
De maneira nenhuma quero menosprezar o trabalho de dublagem brasileiro, um dos melhores do mundo. Entretanto, pensar em impedir o avanço tecnológico é tão absurdo quanto tentar impedi-lo.
A dublagem brasileira tem, sim, que mostrar seu valor. E não tentar um lobby em Brasília para impedir um avanço que, se bem realizado, será benéfico para o consumidor.
Ninguém tem saudade das carruagens. Se os dubladores mantiverem esse viés, também serão esquecidos.
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